domingo, 22 de fevereiro de 2015

Quando Olho Para Mim

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
que me extravio às vezes ao sair
das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
pertencem ao meu modo de existir,
e eu nunca sei como hei de concluir
as sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? Serei

tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

À Uma Hora da Manhã

Enfim, só! Ouve-se apenas o rolar das rodas dos fiacres atrasados e alquebrados. Durante algumas horas nós possuiremos o silêncio, senão o repouso. Enfim a tirania da face humana desapareceu e só sofrerei por mim mesmo.

Enfim! É-me permitido, então, relaxar no banho das trevas. De saída, uma dupla volta na chave aumentará minha solidão e fortificará as barricadas que me separam atualmente do mundo.

Horrível vida! Horrível cidade! Recapitulemos o dia de hoje: ter visto muitos homens de letras, um dos quais me perguntou se se podia ir à Rússia por via terrestre (ele tomava, sem dúvida, a Rússia por uma ilha); ter discutido generosamente com o diretor de uma revista que a cada objeção respondia: “Aqui é o partido das pessoas honestas”, o que implica que todas as outras publicações são redigidas por patifes; ter saudado umas vinte pessoas, das quais quinze desconhecidas; ter distribuído cumprimentos manuais na mesma proporção e isso sem ter tomado a precaução de comprar luvas; ter subido, para matar o tempo durante uma pancada de chuva, à casa de uma ginasta especialista em saltos, que me pediu que desenhasse um costume de Venustre; ter cortejado um diretor de teatro que me disse despedindo-se de mim: “Você faria melhor se se dirigisse a Z..., é o mais pesado, o mais tolo e mais célebre de todos os meus autores; com ele talvez você pudesse chegar a alguma coisa. Fale com ele, depois nos veremos”; ter me vangloriado (por quê?) de várias ações vis que jamais cometi e ter negado covardemente alguns outros malfeitos que eu cometera com prazer, delito de fanfarronadas, crimes de respeito humano; ter recusado a um amigo um serviço fácil e dado uma recomendação por escrito a um perfeito idiota; ufa! E será que isso acabou?


Descontente de todos os meus descontentamentos e de mim mesmo, gostaria de me recuperar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. Almas daqueles que amei, almas daqueles que exaltei, fortificai-me, sustentai-me, afastai de mim a mentira e os vapores corruptores do mundo; e Vós, Senhor meu Deus! acordai em mim a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que eu não sou o último dos homens, que eu não sou inferior àqueles a quem desprezo.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Chamas

Meu nome saído de teus lábios
Em uma tonalidade envolvente,
Amortece a queda quando caio,
Envolve-me naquilo que sentes.

O fogo nascido em meu peito:
Purificador, faminto e sensual.
Transforma em pira nosso leito,
A potente e alegre pira nupcial. 

Os nossos corpos se enlaçam,
As nossas vidas se conectam,
No calor de intensas chamas.

Nossos olhares se encontram,
Minha entrega se completa
Quando meu nome chamas.


Para Paula Alves.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Memórias: Poesia e Verdade

"Criança, criança! Basta! Como fustigados por espíritos invisíveis, os cavalos solares do tempo arrebatam consigo o carro leve do nosso destino, e nada mais nos resta senão segurar firme as rédeas, com toda a nossa bravura, todo o nosso sangue-frio, e desviar as rodas ora para a direita, ora para a esquerda, aqui de uma pedra, ali de um precipício. Para onde vamos... quem o sabe? Mal nos lembramos de onde viemos".

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Sobre o Humor

A palavra "humor" significa, na verdade, o contrário de "secura" e penso que lhe prestamos a devida honra quando nos atemos a essa definição. Pois o humor pode inspirar obras de vasta humanidade e raro teor de verdade. Digo "vasta humanidade" porque o humor sempre teve uma tendência ao que é grande e amplo, a uma amplitude brutal e rude, como a dos humoristas ingleses do século XVIII.

E justo porque o espírito latino observa com maior rigor a religião da forma, o humor não pode florescer tão integralmente entre os povos românicos. Daí que, no país de Voltaire, de Renan e de Anatole France, ele se transforme em ironia. E como o humor moderno, avesso a tudo permitir no domínio da forma, não pode ser outra coisa senão uma espécie de ironia otimista e clarividente, creio que no futuro o gênio francês terá parte expressiva no desenvolvimento de um humor mais profundo.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Rua de Mão Única

Sala de Jantar

Vi-me, num sonho, no gabinete de trabalho de Goethe. Não havia qualquer semelhança com o de Weimar. Reparei que era muito pequeno e tinha uma única janela. O lado mais estreito da mesa estava encostado à parede em frente. O poeta, em idade muito avançada, estava sentado a escrever. Eu deixei-me ficar ao lado, até que ele interrompeu o trabalho e me ofereceu uma pequena jarra, um vaso antigo. Eu a fiz girar entre as mãos. O calor na sala era insuportável. Goethe levantou-se e foi comigo para a sala ao lado, onde estava posta uma mesa comprida para todos os meus parentes. Mas parecia destinada a muitas mais pessoas do que estes. Devia estar posta também para os antepassados. Sentei-me ao lado de Goethe na cabeceira direita da mesa. Quando a refeição terminou, ele levantou-se com dificuldade, e eu, com um gesto, pedi permissão para ampará-lo. Ao tocar-lhe no cotovelo comecei a chorar de emoção.

Para homens

Convencer é estéril.