sábado, 10 de maio de 2014

Dostoiévski - com moderação (1)

Em 1945, Thomas Mann escreveu em língua inglesa um breve ensaio como introdução à edição de pequenas novelas de Dostoiévski. Como a minha admiração por ambos talvez só seja superada por aquela que nutro acerca de Goethe, tentarei traduzir aqui o referido ensaio... Caso alguém queira colaborar ou refazer algum trecho, basta deixar um comentário para que eu providencie o envio do original... (Reservo-me o direito de eu mesmo fazer as alterações que julgue  posteriormente necessárias)
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O convite para escrever um prefácio à edição das pequenas novelas de Dostoiévski por parte da Dial Press possuía algo de extremamente atrativo para mim. A moderação com a qual o editor determinou o caráter deste volume aparentemente colocava a mente do comentador relaxada, bem como o encorajava para uma tarefa que, de outra maneira, o apavoraria, ou até mesmo o faria recuar — a tarefa de fazer do imenso e fantástico universo das obras de Dostoiévski o objeto de sua consideração e discussão. Além disso, este comentador em particular praticamente não teria outra chance em sua vida de homenagear o grande russo se não fosse por essa oportunidade de o fazê-lo ligeiramente, por assim dizer, em um espaço limitado, para um propósito específico e com a modéstia caridosamente prescrita.

Curiosamente, minha vida como autor fez-me escrever detalhados estudos sobre Tolstói e Goethe — muitos sobre cada um deles. Formalmente, porém, eu nunca havia escrito sobre duas outras experiências culturais de magnitude similar que marcaram-me profundamente na juventude, e as quais nunca me foi penoso renovar e intensificar na vida madura: nunca escrevi sobre Nietzsche ou sobre Dostoiévski. Deixo de lado o ensaio que escrevi sobre Nietzsche atendendo a constantes pedidos de meus amigos, embora ele se encontre em minha trajetória. E a “profunda, criminosa, santa face de Dostoiévski” (essa era minha caracterização à época) apenas aparece de maneira fugaz em meus escritos para rapidamente tornar a desaparecer. Por que esta evasão, esta rejeição, este silêncio — em contraste com a inadequada mas entusiástica eloquência com a qual a grandeza dos dois outros mestres inspiraram-me? Eu sei a resposta. Era-me fácil dedicar íntimas e arrebatadoras homenagens, temperadas com suave ironia, às imagens do divino e da boa fortuna, às crianças da natureza em sua exaltada simplicidade e saudável exuberância: ao autobiográfico aristocratismo do formador da majestosa cultura pessoal, Goethe, e à primitiva força épica, a naturalidade incomparável, do “grande autor de todas as Rússias”, Tolstói, com a sua estranheza, sempre falhando na tentativa de espiritualmente moralizar sua pagã corporeidade. Eu encontrava-me porém cheio de temor — o profundo, místico, silencioso temor — na presença da religiosa grandeza dos malditos, na presença da genialidade da doença e da doentia genialidade, do tipo dos aflitos e dos possuídos, em quem o santo e o criminoso são um…

Tenho a sensação de que o Demoníaco é o tema do poeta e não do escritor. Ele fala a partir das profundezas de um trabalho, se possível, travestido de humor; dedicar ensaios críticos a isso me parece, por assim dizer, uma indiscrição. Possivelmente, mesmo provavelmente, isso é apenas uma extenuação de minha indolência e covardia. É incomparavelmente mais fácil e mais salutar escrever sobre a pagã e divina saúde do que sobre a sagrada doença. Podemos nos divertir às custas da primeira, as abençoadas crianças da natureza com sua simplicidade; não podemos nos divertir às custas das crianças do espírito, os grandes pecadores e danados, os sofredores da sagrada doença. Eu consideraria absolutamente impossível fazer troça de Nietzsche e Dostoiévski como ocasionalmente fiz em um romance sobre a egoísta criança da feliz constelação, Goethe, e em um ensaio sobre o colossal e rude moralismo de Tolstói. Segue-se que minha reverência pelos íntimos do Inferno, os devotos e os doentes, é fundamentalmente mais profunda — e apenas por isso menos vocal — do que minha reverência pelos filhos da luz. É uma coisa boa que essa minha reverência tenha recebido um incentivo para tornar-se eloquente, embora manifeste uma natureza praticamente limitada e contida.

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